Riqueza versus Felicidade

Comportamento
21.out.2014

A busca por uma vida feliz vem sendo um dos valores mais proeminentes em nossa sociedade, ou talvez até seu valor supremo. Nossa sociedade atual é a primeira que se propõe a oferecer a felicidade na vida terrena, aqui e agora, e mais: a cada ‘agora’ sucessivo. Uma felicidade instantânea e contínua, coisa até então apenas aos deuses reservada. A ausência da “felicidade” passou a ser um atributo que desqualifica alguém que pretenda ser um membro legítimo da sociedade. Em outras palavras: todo mundo tem que ser feliz, e sempre.

Mas estaria a felicidade ligada diretamente ao que se pode obter através do crescimento incessante de quanto dinheiro ganhamos? Parece que não, a julgar pelos resultados de diversas pesquisas feitas na última década. Eles nos revelam que, quando os países enriquecem, suas populações, paradoxalmente, não se tornam mais felizes. Parece que é só até certo patamar, o da satisfação de necessidades ditas básicas, que o sentimento de felicidade cresce paralelamente ao aumento de renda.  Isso nos sinaliza que consumir mais não pode ser sinônimo de felicidade; não há nada que o dinheiro compre que garanta que ela, a felicidade, se instale em nossa vida.

Para alimentar a discussão, há alguns casos em que os interesses de pessoas que se tornaram muito ricas se tornaram tão reduzidos que a vida passou a evoluir de forma profundamente tediosa. Indivíduos nessa condição já relataram uma sensação de deslocamento no mundo, não desejando mais estar perto dos comuns “outros”. Somente seus pares lhe despertam algum interesse.  Entre os pares, aqueles que conhecem os valores dos bens comprados com o fim maior de se inserir (os ricos querem ser aceitos pelos muito ricos e assim vai) com frequência vai-se embora o prazer de apreciar o que de melhor a humanidade produz. Como o de admirar uma obra de arte. De ler um bom livro, ouvir boa música. Emocionar-se com a história da humanidade? Nunca, só com a própria. E a própria resume-se, com frequência, a “puxa, como sei fazer dinheiro!”.

Pode ser que muitos só entendam a alegoria do tio Patinhas, antigo personagem de histórias em quadrinhos, ao encontrar alguém que, como o próprio, aprecie colecionar dinheiro mais que tudo nessa vida. E o que exatamente significa isso? Significa, mais do que contar e recontar o dinheiro, conviver com ele (entenda-se, figuradamente). O prazer maior desses indivíduos, se fosse possível, seria levá-lo a passear, sentar-se com ele, viajar… que delícia!  Tudo com o dinheiro, pois a companhia de gente, de pessoas de verdade, já não tem a menor graça. Com o grande deus da vida sendo o dinheiro, a maior emoção se torna, mais uma vez figuradamente, poder “sentar-se em cima do dinheiro”, ou seja, buscar com ele um contato quase físico. Daí o “colecionador” em questão não querer mais nem cruzar com os mortais comuns, e ter que estar entre os que não pertencem ao seu patamar de riqueza passa a ser um sacrifício tolerado apenas por necessidade.  Tudo só faz sentido se for para ser exibido a seus pares.

A sociedade voltada prioritariamente para o consumo vive de uma propaganda enganosa: traz a promessa de satisfazer os desejos humanos em um grau que nenhuma outra sociedade no passado conseguiu alcançar. Só que tem um detalhe: a promessa de satisfação permanece sedutora só enquanto o desejo continua insatisfeito. A partir daí, tem que ser substituída por outra, que atenda ao desejo seguinte e assim sucessivamente. A ausência de vida interior, o materialismo em elevadíssimo grau, a sensação de vazio existencial, o empobrecimento do espírito, tudo contribui para o isolamento de tudo e de todos, entendendo-se daí a tal sensação de deslocamento.

E será que tudo isso virá a ter uma saída? A boa notícia é um, de certa forma surpreendente, “sim”.  A ideia que começa a predominar entre os que pensam sobre este assunto é a de que a contrapartida a tudo isso será, a certa altura do desgaste desse modelo, uma sociedade com mais “colecionadores” de afetos em geral. Descobrir o prazer da vida com mais amorosidade: é por aí que surgem as saídas. Precursores já existem, até bilionários passam a militar em causas humanitárias.  Entre os que doam e se doam, é unânime o sentimento de que muito também recebem. Não em dinheiro, mas em gratidão, amorosidade e sentido para a vida.

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