Maternidade postergada

Mulher
04.abr.2017

 

Em 2014, o Facebook e a Apple anunciaram que um novo benefício estava sendo oferecido às suas funcionárias: aquelas que desejassem poderiam, a partir de então, congelar seus óvulos às expensas da empresa. Com a maternidade postergada, elas supostamente passaram a dispor de uma solução ideal para a conciliação entre carreira e vida de família. Na época, muita gente ficou surpresa com a generosa iniciativa. O “presente” despertou logo muita polêmica. Seria mesmo um presente? Estaríamos diante de mais um avanço da modernidade ou de uma consequência inquietante do mundo do trabalho contemporâneo?

O debate na época envolveu os que viram na iniciativa um passo a mais para a igualdade dos sexos na esfera do trabalho e os que, ao contrário, enxergaram na proposição das empresas uma maneira dissimulada de explorar a força de trabalho das mulheres jovens. Como assim?? As empresas estariam, sutilmente, colocando pressão sobre as funcionárias que ainda não haviam pensado em retardar a maternidade para fazê-lo. E elas, ao contrário, talvez preferissem que seus empregadores lhes dessem os meios de não ter de escolher entre trabalho e família.

Ao olharmos para este episódio de forma mais abrangente, vemos que a questão que se delineia é a possibilidade real de as mulheres, aos poucos, estarem perdendo a chance de escolher livremente quando engravidar. Por trás da ideia de que é sempre possível retardar ao máximo a gravidez, programas desse tipo, “de apoio” às mulheres, acabam vendendo a ilusão de que o tempo pode passar sem que nada vá mudar, tanto para as mulheres como para seus bebês. Agindo assim, negam o fato, ainda não resolvido pela ciência, de que uma gravidez tardia ainda traz muito mais riscos, tanto para as mães como para seus filhos. Embora se tenha evoluído muito nas últimas décadas em termos de técnicas de reprodução assistida, sabe-se que o sucesso do procedimento depende de vários fatores. O índice de insucesso ainda é elevado, especialmente em mulheres de mais de 35 anos, quando cai a qualidade dos óvulos liberados. Na verdade, a idade considerada ideal para o congelamento dos óvulos é em torno dos 30 anos.

Já se descobriu, por exemplo, que há uma delicada relação molecular entre o embrião e o endométrio (parede do útero) e que, se essa relação não for precisa e perfeita, não acontecerá a gravidez. A qualidade dessa relação também diminui com o aumento da idade. Como este, há vários fatores que interferem no sucesso ou insucesso das técnicas de fertilização atuais. Sobre o assunto, já existem  numerosos estudos à disposição de quem se interesse.

Ainda é comum que se façam algumas tentativas de implantação do embrião, até que uma seja bem sucedida. A dor emocional que acompanha cada tentativa fracassada é enorme. Isso não é levado em conta pelas empresas que incentivam a reprodução assistida desnecessária. No caso, é o risco de alguém se confrontar com frustrações,  sensação de impotência, incapacidade e desamparo que é ignorado.

Em vez de estimular mulheres cada vez mais, até com a ajuda de médicos, a embarcarem na ilusão onipotente do postergar quase infinito, a sociedade precisaria considerar, entre outras medidas, uma real mudança cultural em seu  interior. Quem sabe, se a questão da conciliação entre trabalho e família deixasse de ser um problema essencialmente feminino, chegaríamos mais rapidamente a uma solução adequada de verdade?

simone_sotto_mayor

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